Válvula de Escape
Válvula de escape
Por Maria Eduarda Rabello
Aquela era apenas mais uma sexta-feira comum. Ele chegara em casa exausto, e assim que se viu dentro do apartamento agarrou o frasco estrategicamente disposto sobre o aparador perto da porta. Em um movimento desesperado, levou os comprimidos mágicos à boca, na ânsia de afastar, ao menos por algumas horas, a nuvem negra que o perseguira durante todo o dia. Sentia pena de si mesmo, e achava que todo homem merecia ter ao menos uma válvula de escape.
Por descuido do destino, ele tinha duas: a segunda enrolava-se agora entre as suas pernas, esfregando os pelos cor de âmbar na calça surrada. Sentado em uma velha poltrona no canto da sala, ele afrouxava o nó da gravata ao mesmo tempo em que corria os dedos pelo corpo macio da pequena companheira. Como se enxergasse a nuvem negra, ela retribuía o carinho com latidos baixos e acolhedores.
Enfim uma noite de distração e esquecimento. O homem percorreu os cômodos cerrando todas as persianas, fazendo com que o modesto apartamento desaparecesse do mundo mais uma vez. De volta à sala, ligou o rádio que contava histórias de outra época e sintonizou na estação da juventude. A diversão deveria estar ao alcance de todos, afinal. Sentindo a nuvem esvanecer, convenceu-se de que os comprimidos mágicos cairiam melhor se acompanhados por uma dose de líquido também mágico.
A música tocava alta, e dentro do apartamento não se ouvia os protestos dos vizinhos. Ali, naquela sala apertada, começavam a surgir tímidos raios de sol. Juntos eles dançavam e brincavam. Ora faziam coreografias, ora rolavam pelo chão. Entretinham-se com as bolas de tênis e tentativas de cantoria, um tropeçando nas palavras e outro esforçando-se no uivado. Por algumas horas, eles escaparam. Ela, em felicidade pura, não poderia desejar mais nada. Ele, em êxtase induzido, desejava sempre mais.
Como todas as ideias ruins, aquela pareceu boa no primeiro momento. Tinha certeza de que a pequena também desfrutava daquelas noites de regozijo, mas e se ela pudesse aproveitar como ele? E se pudesse ver, cheirar e sentir ainda mais intensamente? E se pudessem compartilhar exatamente a mesma experiência? Ela estivera ao seu lado em todos os dias escuros... Ele só queria mostrar-lhe um pouco do sol.
Quis ser cauteloso. Meio comprimido deveria ser o suficiente. Com a cachorra no colo, rodopiou entre os móveis, inebriado pela expectativa. Levava na mão esquerda a cura de todas as dores, e sem mais hesitar dividiu o que havia de mágico no mundo com ela. A cadela recebeu o comprimido como se estivesse sendo presenteada com um saboroso petisco. Alheia à tempestade que borbulhava dentro de si, agitava-se nos braços do dono, o retrato da lealdade.
Não demorou para o tempo mudar. Enquanto ele vivia sua apoteose no cômodo luminoso, a pequena experimentava a chegada da tormenta. Volta e meia o homem interrompia o seu descarregar de frustrações para correr os olhos pela sala, em busca da parceira. Linda! Ela corria e girava e debatia-se e dançava e uivava e mordia-se e paralisava e retomava. Que grunhidos de alegria eram aqueles! Estavam completamente em sintonia: ela agonizava e ele não via.
A mágica dos comprimidos ia cessando. A música já lhe incomodava os ouvidos, e a energia de agora há pouco se esvaíra. Exausto novamente, ele recolhia os pedacinhos da personalidade de que se desfizera naquela noite de festa. As nuvens negras se aproximavam, dirigindo-se todas para um cantinho escondido da sala. Ela descansava atrás da poltrona velha, aninhada sobre aquilo que ainda ontem fora uma calça surrada pelo trabalho. O corpinho cor de âmbar jazia imóvel, fiel até o último respiro. Lá fora o céu fazia-se negro como nunca, e ele já não tinha mais válvulas de escape.
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