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ESPECIAL: Como identificar práticas abusivas no universo equestre

Reportagem originalmente publicada no portal Canal Hipismo em 2020

O repúdio ao abuso animal é unânime, mas a definição popular desse conceito não é. Quando falamos de abuso, há uma grande distância entre teoria, prática, discurso e ação — o que pode gerar um resultado perigoso. Por vezes, não conseguimos identificar atitudes abusivas, e, inadvertidamente, até acabamos por adotá-las.

Essa realidade se torna ainda mais evidente no universo dos cavalos. A premissa de qualquer esporte equestre é cultuar o bem-estar, a saúde e a felicidade animal, mas práticas que promovem justamente o contrário não são incomuns no dia-a-dia dos centros de treinamento ao redor do globo.

Em uma rápida pesquisa no Instagram do CanalHipismo (@canalhipismo), 71% dos seguidores que participaram, disseram já ter presenciado alguma situação abusiva no meio hípico. Assim, nessa reportagem especial vamos analisar o que é, de fato, o abuso animal, como ele se manifesta na dimensão física e psicológica, quais os seus impactos na saúde do animal, como podemos evitá-lo e como a legislação brasileira e as entidades responsáveis se posicionam sobre o tema.

Acompanhe a ordem:

  1. O QUE É ABUSO ANIMAL
  2. A DIMENSÃO FÍSICA
  3. A DIMENSÃO PSICOLÓGICA
  4. POSICIONAMENTO DAS ENTIDADES
  5. COMO AGIR

Prática conhecida como “Soring”, que hipersensibiliza as patas e cascos a fim de conseguir um bom desempenho na marcha “Big Lick”. É mais comum nos Estados Unidos. Crédito: Freepik.


1. O QUE É ABUSO ANIMAL

No Brasil, podemos nos guiar por duas diretrizes principais: pela conceituação de abuso, maus-tratos e crueldade do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) e pela Lei Federal de Crimes Ambientais (L9605/98).

O CFMV classifica abuso como “todo e qualquer ato intencional que implique no uso despropositado, indevido, excessivo, demasiado e incorreto dos animais, causando prejuízo de ordem física ou psicológica”. Para o Conselho, os maus-tratos “são atos ou omissões que provoquem dor ou sofrimento desnecessários ao animal”, e crueldade é “submetê-los a esses fatores de forma intencional e/ou continuada”.

A legislação federal, por sua vez, aborda o tema no Art. 32. Conforme a lei, é crime “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”.

A médica veterinária Francielly Luiz (@vetfranluiz), especialista em clínica e cirurgia de equinos, esclarece que abuso no âmbito do esporte equestre é, portanto, “tudo aquilo que gera, consciente ou inconscientemente, dor, sofrimento, desconforto, medo ou estresse ao cavalo”.

Aqui, a ação excessiva da embocadura faz com que o animal abra a boca para aliviar a dor. A posição da cabeça, exageradamente recuada, também foi induzida. Crédito: pixabay


2. A DIMENSÃO FÍSICA

O aspecto físico do abuso é percebido com muito mais facilidade do que o mental, mas isso não significa que seja reconhecido sempre. O Regulamento Geral da Confederação Brasileira de Hipismo (CBH) considera as seguintes ações abusivas:

- Chicotear ou bater num cavalo de forma excessiva
- Submeter um cavalo a qualquer tipo de aparelho que provoque uma descarga elétrica
- Usar de maneira excessiva e/ou persistente as esporas, ou castigar exaustivamente a boca do cavalo com ações violentas e continuadas
- Montar ou tentar montar de novo um cavalo visivelmente esgotado, que esteja mancando ou ferido
- Barrar um cavalo em qualquer local, dentro ou fora do terreno do concurso
- Hipersensibilizar qualquer parte do cavalo
- Utilizar qualquer peça de arreamento que possa ferir ou causar dor ao animal
- Deixar um cavalo sem alimentação, água e exercícios adequados

Essas situações podem acontecer tanto nas competições quanto nos treinos e no manejo diário.

Segundo Francielly, o uso abusivo de um equipamento ocorre quando o animal está respondendo ou tentando responder ao estímulo e, mesmo assim, o cavaleiro segue utilizando o artifício indiscriminadamente. “Não é preciso fazer uma lesão para que algo seja abusivo. A dor já nos indica esse limite”, aponta.

No caso das esporas e dos chicotes, por exemplo, o mau uso não está ligado apenas a existência de um corte. “Quando utilizados excessivamente, causam hematomas internos facilmente identificáveis através do toque. Até as esporas sem ponta podem machucar”, continua. Conforme a veterinária, além de causar danos à pele, isso tensiona a musculatura e a deixa dolorida por um longo tempo.

O uso inadequado das embocaduras traz riscos ainda mais sérios. Uma fissura na boca ocasionada pela ação severa da mão ou pela escolha errada do freio ou do bridão pode ser uma porta de entrada para doenças como o tétano e, se não for tratada, pode gerar um quadro infeccioso e levar até mesmo ao óbito.

A aplicação de substâncias cáusticas nas patas dos animais, por sua vez, provoca uma dor extenuante. Há relatos do uso dessas técnicas em todo o mundo, inclusive no Brasil. Alguns atletas aplicam o produto acreditando que assim conseguirão um melhor desempenho no salto ou em uma marcha específica, mas o que esses químicos realmente fazem é causar irritação severa e queimaduras graves. “É algo que, em uma consulta logo após o episódio, o veterinário consegue identificar”, alerta. “A longo prazo e após repetidas aplicações, podemos notar mudança na coloração e na textura dos pelos na área afetada”, diz.

Há ainda quem recorra às substâncias de uso oral ou injetável, como drogas que prometem intensificar o desempenho do animal nas provas. “Com o passar do tempo, o cavalo que foi exposto a essas substâncias vai apresentar danos renais, danos hepáticos e problemas cardíacos, podendo até ter uma parada. Quando esses animais são colocados em atividade intensa, o risco aumenta, e pode haver rompimento dos vasos e uma hemorragia pulmonar”, comenta.

Por fim, a especialista em clínica e cirurgia equina lembra que manter os cavalos nas baias por um longo período de tempo também é extremamente prejudicial à saúde. Segundo ela, o confinamento impede que eles se comportem como na natureza, onde se movimentam ao longo do dia, mantém a cabeça baixa e pastam com frequência. Na cocheira, os animais ficam com a cabeça elevada, comem poucas vezes e em grandes quantidades, e se alongam menos. “Isso causa danos nas articulações, na musculatura e na coluna, além de aumentar o risco de cólicas e de não desgastar suficientemente os dentes”, aponta.

Os impactos físicos de um tratamento abusivo são enormes, mas Francielly não os considera sequer comparáveis aos impactos psicológicos. Para a veterinária, as lesões físicas podem ser curadas com relativa rapidez. Os traumas emocionais, por outro lado, podem levar muito mais tempo.

Sangramento nasal possivelmente ocasionado por esforço excessivo. Crédito: TheHorse.com


3. A DIMENSÃO PSICOLÓGICA

O abuso é capaz de modificar completamente o comportamento de um cavalo. Para a especialista em comportamento equino, Paolla Lucchin (@paollalucchin), o ideal seria que os atletas equestres entendessem muito mais sobre psicologia equina e que começassem a estudar o tema logo nas primeiras aulas de equitação.

“O cavalo tem mais expressões faciais que o cachorro, por exemplo. É muito fácil identificar quando eles não estão se sentindo confortáveis. Não fazemos isso porque não aprendemos como, e, às vezes, porque não queremos”, explica. Os sinais mais claros de que um cavalo não está se sentindo bem são os olhos arregalados, o pescoço e a musculatura tensa, as veias saltadas, as orelhas abaixadas e o músculo superior ao olho contraído.

“Na natureza eles são presas, e por isso têm uma ótima memória para lembrar daquilo que em algum momento representou um risco. Pode ser uma situação, um lugar, um equipamento e até uma pessoa”, diz.

De acordo com a especialista, que já competiu nas modalidades de hipismo clássico, um bom exemplo de como o psicológico é afetado pelo abuso são os casos em que um estímulo de dor é empregado para convencer o cavalo a saltar. “Frequentemente, um cavalo não quer passar um obstáculo porque sente medo. O cavaleiro, então, tenta resolver isso causando dor, com uma esporada ou chicotada bem forte. O cavalo vai passar, mas não pelo motivo certo, e sim porque ele está com mais medo da ação do cavaleiro do que do obstáculo”, esclarece.

Ainda que essa atitude pareça ter um resultado positivo, ela traz mais problemas do que soluções. “Um animal que faz as coisas simplesmente porque teme a dor não será um animal confiável. Na primeira oportunidade que ele tiver, vai deixar o cavaleiro na mão, porque ele também não confia em quem o monta”, adverte.

Outro exemplo são cavalos que costumam corcovear e dar muitos coices. Ela relata que, muito mais do que uma questão de temperamento, esse comportamento é uma resposta ao desconforto. “Muito provavelmente algo não está bem com esse cavalo. Pode ser a embocadura, a sela, o uso do chicote ou da espora. Podem existir outras razões, mas a existência de dor deve ser sempre a primeira suspeita”, comenta.

Ela ainda reforça que o estado mental do cavaleiro influencia diretamente no estado mental do cavalo — e que até o batimento cardíaco do animal acompanha o batimento do ser humano. “Se eu me estresso em uma prova, o meu conjunto sente e consegue prever que isso levará a uma chicotada, se esse for meu modo de agir. O cavalo consegue antecipar e fica ainda mais nervoso”, diz.

Os danos emocionais têm diversas origens, mas Paolla é categórica: “Para mim, nada pode ser mais abusivo do que deixar o animal confinado em uma baia”.

Em seu habitat natural, os cavalos passam em média 20 horas pastando, além de terem sempre algum estímulo sensorial. “Hoje, as hípicas grandes possuem muitos cavalos e poucos piquetes. O comum é que os animais fiquem soltos, no máximo, duas horas por dia para que possa haver revezamento. A conta não fecha, e isso não é suficiente de forma alguma”, frisa. O tempo excessivo em cocheiras pode conduzir a altos níveis de estresse mental, à dança do urso (condição em que o animal apenas troca de mãos, sem sair do lugar), a aerofagia (o animal engole ar), a sustos exagerados e até ao hábito de morder pessoas.

“Eles sofrem demais com isso. Nesse cenário, também não há convivência com outros animais, algo importantíssimo, já que o cavalo é um animal de manada”. Uma boa opção para estimular o contato, mesmo quando eles estiverem nas baias, são as janelas compartilhas. “Eles se sentem muito mais seguros quando podem ver e sentir uns aos outros. Fomos nós que decidimos que seria desse jeito, que eles ficariam isolados e comeriam quando quiséssemos. E é claro que isso vai ter resultados negativos”, lamenta.

Paolla acredita, entretanto, que quase todos os animais podem ser reabilitados. Quando o tratamento abusivo é interrompido, o cavalo percebe e passa a reagir de forma diferente. Com o acompanhamento correto, a saúde logo se recupera.

Existe, porém, uma condição rara e grave chamada de Desamparo Aprendido. Segundo a treinadora, um cavalo que tenha sido submetido a maus-tratos prolongados e frequentes pode desenvolvê-la, e aí simplesmente parar de demonstrar sinais de desconforto. “São casos muito perigosos, porque esse animal não avisa. Ele não mostra que está descontente, e quando um gatilho mental é ativado, ele pode ter qualquer reação, sendo muito agressivo e até partindo para cima da pessoa. Infelizmente, quando chega nesse ponto, é um dos únicos casos em que a recuperação é muito difícil”, alerta.

Lesão na pele por uso inadequado das esporas. Crédito: EuroDressage.com

4. POSICIONAMENTO DAS ENTIDADES

Quem regulamenta e aplica as penalidades por atitudes abusivas no hipismo clássico no Brasil é a CBH, junto com as entidades de cada estado. As denúncias são encaminhadas para o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e passam pelo devido processo legal.

No capítulo VII do Regulamento Geral da CBH, que trata da proteção dos concorrentes e dos cavalos, constam as seguintes orientações:

- Casos de crueldade devem ser levados imediatamente ao conhecimento do júri de campo
- Os casos comunicados após o término de um concurso devem ser repassados à CBH, que os encaminhará a Comissão Nacional de Modalidade ou STJD
- Relatórios encaminhados à CBH depois de 15 dias do término do concurso não serão levados em consideração
- Os oficiais, ou qualquer outra pessoa, que denunciarem um caso de crueldade devem, se possível, se assegurarem da presença de testemunhas da ocorrência, de qualquer outra prova de evidência e apresentá-la ao Júri de Campo ou obter declarações escritas das testemunhas, devidamente assinadas e com seus nomes e endereços.

O texto trata das penalidades no Capítulo IX, Art. 156. De acordo com o documento, a infração de qualquer norma do Regulamento da CBH, incluindo práticas abusivas, pode resultar em:

- advertência
- censura escrita
- multa
- desqualificação das provas ou dos concursos
- suspensão por um determinado período
- suspensão definitiva

O regulamento, entretanto, não esclarece como devem ser tratados os casos de abuso que tenham ocorrido no dia-a-dia dos centros hípicos, e não em competições.

No estado do Rio Grande do Sul, a Federação Gaúcha de Esportes Equestres é a primeira na linha de competência e responsabilidade sobre o tema. No seu Estatuto Social, consta o seguinte trecho:

“As amazonas e os cavaleiros da FGEE solenemente proclamam seu respeito aos direitos do cavalo, como definidos no código de conduta da Federação Equestre Internacional.
Em todos os estágios durante a preparação e o treinamento de cavalos de competição, o bem-estar deve ter precedência sobre todas as outras demandas. Isso inclui bons tratos e manuseio, métodos de treinamento, ferragem, arreamento e transporte.”

No estatuto, também não constam instruções sobre como proceder em situações abusivas fora dos concursos.

As entidades brasileiras manifestam frequentemente a sua preocupação com o bem-estar dos animais, e incentivam os cavaleiros a estarem atentos à saúde dos seus conjuntos.

Sangramento na pata, causado por contato com o obstáculo ou por uso de tachas entre o material e a pele. Crédito: pixabay

5. COMO AGIR
A melhor estratégia para reduzir as atitudes abusivas no meio equestre é compartilhar informações. Ao presenciarmos situações com essas características, o primeiro passo é procurar o responsável pelo animal e conversar diretamente com ele.

Nos casos em que a conversa não é uma alternativa, podemos contar com o apoio das federações locais. No Rio Grande do Sul, é possível entrar em contato com a FGEE por:

Outra opção é recorrer diretamente à Confederação Brasileira de Hipismo, através do serviço de ouvidoria nesse link.

Também existem os serviços públicos. No âmbito estadual, o governo do RS recebe relatos de qualquer tipo de abuso animal. Eles podem ser feitos online, nesse link, ou por telefone, no número 181.

O sangue não está circulando adequadamente na língua do animal, possivelmente devido à escolha errada ou ao uso severo da embocadura. Crédito: Erika Franz

PORQUE É IMPORTANTE FALAR SOBRE ABUSO

O que move os atletas equestres amadores e profissionais, independentemente da modalidade, é a paixão pelo animal e o desejo de estar próximo dos famosos “gigantes de quatro patas”. Mesmo assim, a falta de informação e as ambições do esporte podem conduzir a atitudes que causem dano e prejuízo físico e emocional para os cavalos. Debater a questão do abuso, portanto, é uma forma de elucidar quais práticas devem ser evitadas, de melhorar a qualidade da relação dos conjuntos e de preservar o bem-estar dos equinos.